Quando o sujo bater na janela do meu quarto…

Em Lima não chove: moro há dois anos aqui e, nesse período, só duas vezes vi garoar um pouco mais forte – chuvinha, chuvisco, daquelas que molham um pouquinho sem encharcar. Aguaceiro mesmo, tipo tempestade tropical, nunca. Trovão de meter medo, relâmpago cortando o céu, granizo como cai no Brasil, nem pensar.

Daí que, como São Pedro não chora por essas bandas, a cidade não toma banho. Se asseia, no máximo, com o incansável trabalho das equipes de limpeza urbana, mas não tem jeito – Lima está sempre encardida. A frota de veículos velhos emite gases e resíduos que, aliados às condições climáticas e de relevo locais, criam uma estufa de fuligem em suspensão, tanto que a capital peruana já foi considerada a mais poluída da América Latina. Some-se a isso a umidade absurda em Miraflores, que no inverno chega à incrível taxa de 99%, e temos “la mugre”, essa imundície preguenta que cobre tudo e todos o tempo inteiro. Um pesadelo para um virginiano com TOC.

Em casa temos uma abençoada e preciosa faxineira que diariamente varre, espana, aspira, lava, com razoável capricho, e ainda assim, se ao fim da tarde passo o dedo nos móveis, ele sai preto. Imaginem, então, como ficam as janelas, fechadas durante a maior parte do dia justamente para bloquear a entrada da sujeira, que nelas se deposita simbioticamente. A cada duas semanas preciso remover todas os vidros das esquadrias para que sejam devidamente higienizadas e a gente possa voltar a ver o que acontece no mundo lá fora. E É UM INFEEEEEEEEEERNO, porque as porcarias das lâminas até que saem com certa facilidade, mas na hora de botar de volta, não sei, parece que elas crescem, engordam, ou simplesmente teimam de não querer voltar das férias e resolvem NÃO ENTRAR NUNCA MAAAAAAAAAAAAIS, ESSAS BOOOOOSTASSSSS! Como se não bastasse a dor nas costas pelo peso e o medo de derrubar tudo nos carros da garagem ou, pior, nas pessoas passando lá embaixo, ainda tenho que administrar o estresse de não conseguir meter os vidros nos seus respectivos lugares.

Agora tô aqui suado feito dançarino de lambada, exausto, com uma janela meio encaixada e emperrada, não sai do canto de jeito nenhum. E o pior: metade aberta, para deixar a poluição toda entrar. AAAAAARGH!

Quem não tem pão caça com quê?

Depois de quase dois anos e meio morando fora, aprendi a administrar a falta que sinto de comidas que não encontro com tanta facilidade aqui do outro lado das fronteiras tupiniquins.

Feijoada, por exemplo. Tem, mas não é a mesma coisa. Aqui em Lima já fui a dois restaurantes que servem a iguaria – meu prato preferido, por sinal –, sempre aos sábados, com arroz branco, torresmo, caipirinha, até um pagodão acompanhando. Mas é diferente. O feijão tem outro gosto. A couve-manteiga é substituída por acelga. Não tem paio. Nem linguiça calabresa. E não tem farofa, porque não tem farinha de mandioca. E eu sou cearense, né?, então feijoada sem farofa não é feijoada, dicumê sem farofa não é dicumê, a vida sem farofa é sem graça.

Também tive que aprender a viver sem minha pornfood predileta, a delícia-mor dos meus delírios famélicos vespertinos, o salgado símbolo da brasilidade nagô: a coxinha. Nem falo de acarajé: cedo entendi que só na Bahia para comer um acarajé de respeito. Mas coxinha, poxa, aquela gota de amor brilhando de óleo, com a massa crocante por fora e cremosa por dentro, guardando o precioso tesouro de galinha desfiada com cebola picada, verdinhos miúdos, carinho pra alma e vontade de mais… Por mais que eu goste de empanada – e eu gosto muito, de verdade –, ai, como dói ficar sem coxinha.

Brigadeiro é mole, dá pra fazer em casa. E eu nem sou lá tão fã, prefiro beijinho de coco – que também dá pra fazer em casa, sabendo onde achar coco fresco. Guaraná Antarctica já se vende aqui, assim como panetone Bauducco, biscoito champagne, pão de queijo congelado e, claro, cachaça. Mas não tem requeijão. Nem catupiry. Nem goma pra tapioca. Nem Nescau, minha gente, e eu sou viciado em Nescau. É muita privação pro cristão.

Agora o sofrimento mesmo, o flagelo supremo bate é de manhã cedo, a remela ainda nos olhos, quando levanto para o desjejum. Não todo dia, preciso confessar, mas é uma desolação recorrente. Me acostumei a comer cereal com iogurte, granola, frutas, sucos, café, ovos e tal. E tem meu amado-idolatrado-salve-salve queijo-quente para os dias mais nublados. Até arepas são bem comuns aqui em casa… mas eu sinto falta, tenho crises de abstinência de pão francês. O bom e velho carioquinha, cacetinho, pão de sal, careca, o pãozinho nosso de cada dia. Aquele que se compra de dúzia, ainda quentinho, no saco de papel, na padaria da esquina, sem frescura de nada, para besuntar de manteiga Aviação ou Itacolomy e tacar na chapa quente. E chuchar no café-com-leite. E comer mais um, porque o primeiro nunca é suficiente. Sonho dormindo e acordado com pão francês, juro. Não tem substituto, não tem compensação possível, só tem o desejo. De grávida. Incontrolável, incontornável, desesperador.

Não tem como importar, já pesquisei. A legislação não permite, e a logística necessária obviamente comprometeria a qualidade do produto. E, mesmo que eu fosse um trilhardário passageiro Top Platinum Plus Premium Gourmet de qualquer companhia aérea, seria irracional pegar um avião para saciar minha tão frequente vontade de comer pão francês.

O jeito é aceitar mais essa agrura da escolha de desterrar. Ou… virar padeiro! A globalização tá aí, chegou pra ficar, não é possível que um migrante brasileiro não possa aprender a fazer pão francês numa escola de culinária peruana, né?

Ou convido alguma amiga padeira conterrânea para me visitar e me ensinar, assim mato (a saudade e) dois coelhos com uma sovada só. E aproveito e peço a ela para trazer umas castanhas-de-caju também. E azeite de dendê. E Nescau, muito Nescau. E… tá, parei. Vou ali almoçar minha quínua (mas eu queria mesmo era um carioquinha quentinho, nham!).

O que o silêncio encerra

Não percebi que seus olhos são verdes, cristalinos, porque estavam sempre apontando ao chão. Não sabia como era sua voz, mal havia falado na primeira vez que nos encontramos – mesmo que eu lhe tivesse dirigido palavra em mais de uma ocasião. Sou de integrar, e afinal somos um time, trabalharemos juntos, quero não só conhecer cada um como espero que todo mundo se achegue, pelo bem do nosso propósito enquanto equipe.

Tímido, se disse. Músico, estrangeiro como eu. Muito alto, muito magro, muito bonito, tipo modelo. No canto, enquanto os outros se enturmavam com a estridência típica à sua juventude. Tentei trazê-lo, puxei assunto, brinquei com sua mudez, a gente riu – ele, quase não. Se continha, não estava à vontade ali, imagino que não esteja à vontade em alguns outros lugares ou circunstâncias também.

Não sei muito dele além do que já mencionei. Só sei mais que é gay. E talvez por isso seja tímido. Talvez por isso não se integre tão facilmente quanto os demais. Talvez por isso prefira baixar a cabeça em vez de encarar as pessoas. Baixar a cabeça, que simbólico. Se permitir ser submetido, não resistir. Aceitar, ainda que não seja aceito – ou, talvez, por isso.

Nesse mundo com tanta voz, com tanto grito, tantos ainda se calam. Muitos são realmente retraídos, reservados, não gostam mesmo de aparecer. Mas há os que têm medo, eu sei. Os que se fecham porque não querem ser julgados, porque não querem se justificar, não querem sentir-se mal por simplesmente ser quem são.

Pode ser acanhamento, só. Ou pode ser uma triste, solitária prisão.

Keep calm and please be quiet

Nunca fui fã de muita zoada, mas nos últimos anos o que era um incômodo administrável aparentemente vem se transformando numa semente de ódio que sabe Deus que frutos malignos pode dar.

Venho tentando identificar quando foi que essa intolerância aumentou.

Quando era criança adorava um furdunço: lembro dos arrasta-pés na casa do Tio Preto, com Os Negões da Caixa Prego (banda informal dos meus primos) tocando um forró danado até altas horas e eu dançando a noite toda com mamãe, e das festinhas de aniversário ou celebrações de família em que sempre rolava um Ursinho Blaublau, o Homem Primata ou a Alice não escrevendo aquela tal carta de amor pra gente chacoalhar o esqueleto. Achava era bom.

Já adolescente, não perdia um “som” (#éonovo) na casa dos amigos, pumping up the jam até a hora de vencer a timidez quando botavam música lenta de roçar bochecha, na esperança de descolar um cangote cheirando a Giovanna Baby e umas bitocas para depois suspirar construindo meus castelos no ar (eu me apaixonava bem ligeirinho naquela época – quer dizer, talvez isso não tenha mudado muito…).

Na faculdade a vida era uma farra atrás da outra. Não faltava calourada, Culto a Baco, cervejada, FestECA, churrasco, vernissage (inesquecíveis bocas-livres), barzinho, reunião de amigos… tudo embalado por música alta, fuxico, riso solto, aquela muvuca típica de qualquer aglomeração. Lembro até uma vez quando nos juntamos no sítio da Juliana para uma feijoada histórica que terminou durando três dias e rendendo algumas das memórias mais cômicas e impublicáveis da vida. Na primeira noite era Juliana des-maiada por acolá e os bêbo ocupando todas as camas, redes e congêneres que havia na casa: eu, valente e resistente, demorei a cair, e quando finalmente me rendi não tinha mais leito sobrando, daí o jeito foi deitar no sofá que escorava as gigantescas caixas de som que animavam a bagaceira, num volume tão alto que fazia meu moribundo corpo tremer todo. Mesmo assim eu dormi.

Depois de formado fui morar com a Renata, e deve ter sido nessa fase que descobri o valor do silêncio. Ainda gostava de sair, final de semana sempre tinha balada, mas em casa eu tinha que ficar mais quieto porque ela precisava estudar. Nós dividíamos um apê delícia na Vila Madalena, de frente pruma praça também delícia, e toda manhã eu acordava com passarinhos cantando. Gostei daquele bucolismo, assimilei o sossego e encontrei a paz. Comecei a trocar as noitadas por programas mais caseiros – graças à companhia maravilhosa da minha roommate –, e receber pequenos grupos no aconchego do nosso lar de repente me parecia muito mais prazeroso que estar no meio da multidão. Por fim atinei que o alvoroço me desviava do que mais me interessava: as pessoas e suas histórias. Para disfrutar disso, eu, que tenho algum grau de TDA, precisava me concentrar, e qualquer excesso de estímulo me atrapalhava demais.

A raiva do barulho deve ter piorado quando fui morar na Consolação. Minha janela dava pra Augusta, com toda sua agitação e confusão 24×7. Fechava as janelas sempre para poder escutar meu jazzinho, ler ou conversar tranquilo com quem viesse me visitar. Mas o ato de fechar as janelas, simbolicamente, representava um encerramento que em nada combina com meus ideais de liberdade.

E acho que é por isso que amanheci especialmente angustiado hoje (ufa, finalmente chego ao motivo deste post). Nosso apê aqui fica no quarto andar e dá de frente para uma rotatória relativamente movimentada, e, mesmo fechando as janelas – o que, como acabei de explicar, me provoca sensações ruins –, ainda se ouve o pandemônio da rua. O que me desconcentra, desequilibra, me torna ainda mais improdutivo e desfocado. Me atazana o juízo, compromete o humor, enfurece. E eu viro o Walter White de “Breaking Bad”, o William Foster de “Um dia de fúria”, a María Elena de “Vicky, Cristina, Barcelona”. O Taz.

Acho que vou começar a usar tampões de ouvido enquanto não instalamos vidros anti-ruído. Ainda assim, não tem tecla “mute” pro mundo, né? Como lidar com alarmes de carro, bebês chorando em avião (mães, perdoem-me a franqueza), cachorros histéricos, showmícios, aviões, fogos de artifício, a Sofia Vergara? Tá, a Sofia eu amo, gasguita como for, ela pode berrar o quanto quiser.

Mas já vou avisando: se eu não ficar mouco em breve, cuidado comigo. De coroa misófono a velhinho homicida é um pulo. Ou um grito.

Bitch!

Aos 3 meses de idade, reparamos que Luna sentia uma dor: não caxingava, mas sempre reclamava quando agarrávamos sua pata traseira direita, que era menos forte que a esquerda. Tinha coisa errada ali. Levei ela à clínica, onde foi examinada e diagnosticada com uma inflamação, possivelmente decorrente de uma queda. Mandaram dar um remédio e disseram para voltar em uma semana. Passados uns dias, de fato ela parecia melhor: ganhou massa muscular, já não gania, parecia estar tudo bem. Mas eu continuava cabreiro, então pedi que lhe tomassem uma radiografia. Para a surpresa de todos – e nosso desespero -, Luna tinha uma fratura na cabeça do fêmur. Segundo a veterinária, a calcificação ali era muito pouco provável porque essa região é porosa, e também por isso não aguentaria um pino. A solução seria cortar o osso e esperar que se formasse um tecido esponjoso. A cirurgia era relativamente delicada, e a convalescência, sim, um pesadelo: a cachorra, espoleta toda, teria que ficar em repouso sem se mover muito por duas semanas. Para se ter uma ideia da improbabilidade disso acontecer: saio com a Luna todo dia, de manhã e à noite, e ela NUNCA se cansa. É uma energia sem fim: corre mas que bala, pula feito coelho, interage com todo humano, canino, arbóreo ou mineral que encontra no caminho. Mantê-la quieta por 14 dias seria impossível sem sedação, e o risco de machucar a pata e comprometer a recuperação era grande. De qualquer forma, teríamos que esperar alguns meses mais porque Luna era muito pequena ainda para a anestesia.

Dois meses e meio depois, com a pequena já prestes a virar mocinha, chegou a hora de esterilizá-la. Decidimos aproveitar o embalo – e a anestesia e o período de molho – para fazer logo tudo de uma vez: tirar os ovários, o útero e ajeitar também a patinha. Nos exames prévios, nova radiografia e nova surpresa: o osso calcificou sozinho, perfeito, de um jeito que a veterinária disse nunca ter visto e jamais esperaria! Minha filha é praticamente o Wolverine quadrúpede! Não precisa mais operar o fêmur, eba, eba!

Daí que hoje foi só a ovariohisterectomia mesmo. Pela primeira noite nos últimos 4 meses ela dorme fora de casa, tadinha. A essa hora deve estar lá, chorando no meio de muitos outros cachorros, sofrendo dores horríveis, com um cone aterrorizante na cabeça, sentindo-se abandonada e sozinha no mundo. Meu coração em frangalhos, não sei se consigo dormir…

Se bem que a bicha é mutante, se autorregenera. Se duvidar, já deve ter escapado da clínica, recauchutado os miúdos, entrado no cio imediatamente e agora está tocando o terror com toda a cachorrada na rua.

Ou seja: a gente aqui, morto de preocupado com a saúde dela, a conta bancária arrombada (à toa) para que tivesse o melhor tratamento possível, e a safada por aí saciando sua luxúria.

Bitch.

Happy Bel’s Day!

Três da madrugada, durmo des-mai-a-do no sofá do escritório. Ela joga um copo d’água na minha cara, eu pulo sobressaltado:

– ACORDA! A prova é daqui a pouco e tu tem que me ensinar essa merda de trigonometria!

Isso tem 20 anos, época do pré-vestibular. A gente se reunia na casa dela para estudar pras provas, um grupo de 7 meninas e eu, bendito seja sempre. Bel morava num apartamento bonito e confortável na Aldeota, com 4 suítes e vista pro mar. Filha de médicos, com grana, podia ser muito fresca como outras no colégio. Era não.

Nunca vou esquecer do dia quando a convidei para almoçar em casa, nós ainda na… quê? sexta, sétima série? Saímos da aula, pegamos o ônibus, descemos na Jovita Feitosa e caminhamos debaixo do sol quente. Ana Célia tinha preparado um baião-de-dois, uma carne de sol, e serviu o almoço nos pratos duralex gastos, riscados. Lembro da vergonha que sentia por morar numa casa sem luxo no Parque Araxá. Sorrindo amarelo, repeti a velha frase que vovó dizia com tanta simpatia:

– A casa é simples mas recebe com amor, viu?

Ao que ela, quase me ralhando, respondeu:

– Tu tá me dando um prato de comida! Acha mesmo que eu vou reparar em qualquer coisa? Tenho só é que agradecer!

Ela é minha irmã. Seus irmãos viraram meus irmãos. Seus pais são meus tios lindos. Suas filhas, as sobrinhas amadas do Tio Lêco. Somos todos uma imensa família, feitos da mesma matéria, curtidos na mesma dor e no mesmo riso. Fui buscá-la no aeroporto quando ela voltou da Disney pela primeira vez, cheia de canetas coloridas e adesivos brilhantes na mala. Ela me deu o último abraço quando fui embora para São Paulo. Sequei suas lágrimas nos términos de namoro e nas noites de cólica. Brincamos e nos embebedamos juntos tantas vezes, do Iguape a São Paulo. Chorei de alegria quando ela se formou em Medicina. Fui padrinho no casamento. Estava lá tirando foto quando a Bebela nasceu. Ela acompanhou a cirurgia da minha mãe e, aos prantos e sem condição de falar, escutou seu pai me contar que o câncer era terminal. É muita história. Muita cumplicidade. E a segurança absoluta de que, apesar de qualquer distância ou tempo, temos um ao outro.

Feliz aniversário, feliz vida, Cybele. Te espero em 2015 – a casa ainda é simples, mas continua recebendo com muito, puro e eterno amor.

P.S.: Me controlei e nem falei da tomadinha, viu?

CRUSP, 1997

CRUSP, 1997

Acabou mas tem

Comunicado urgente do condomínio: no dia 04 (vulgo hoje) será feita limpeza na cisterna do prédio e não haverá água a partir das 08 da manhã. Entendido, a gente se programa, tem que fazer manutenção mesmo pela boa saúde da galera, pra não formar aquele lodo nojento nas beiradas da caixa d’água nem juntar Aedes aegypti.

Tratei de me banhar logo, que eu sou muito higiênico, e aproveitei para encher uns baldes (mentira, era um panelão mesmo: o balde quebrou e eu esqueci de comprar outro porque tinha mais o que fazer). Deu 08:30 e saravá, tudo normal, habemus aqua.

Às 09 chega Susana, a faxineira maritaca, e trato logo de avisar:

– Cunhã, avia com a louça que a água vai se acabar! Era pra ter findado mais cedo, então se avexe porque já-já fica sem.

Ao que ela mui suave na nave me responde:

– Tranquilo, joven… somos peruanos, verdad? Si dijeron que se iba a las 8 entonces seguro me alcanza para lavar lo que sea y limpiar toda la casa!

Verdade, Susana, penso. Bora logo dar banho na Luna, encher o açude e aproveitar pra mandar uns carocim d’água pros meus pessoal no Sumpaulo. O deserto é aqui, mas tá faltando é lá…

Conexão Lima – Oz

Depois de anos, muitos anos, uma prima amada me manda uma mensagem dizendo que vem por aqui. Nos reencontramos, nos adicionamos às agendas e, em minutos, nos reintegramos às vidas um do outro. Back home, como se nunca tivesse sido longe. Nunca foi, talvez: apenas esteve. E outros poucos minutos depois, seu irmão, meu também primo, meu também amado, de repente de volta à minha vida e eu de volta à sua. Como se nunca houvesse deixado de. Como se sempre. Porque sólido, porque fogo – porque sempre, afinal. Ela me enviou seu prematuro roteiro de viagem que começa e termina pelo Peru, ansiando por me ver. Ele, orgulhoso, mostrou os cachorros e a casa nova. Eu, que num restaurante esperava a amiga de décadas e seu marido e mais duas novidades, tratava de controlar as lágrimas, pois homem não chora, me ensinou vovó. Mas eu queria mesmo era chorar, queria mais era voltar 20 anos no tempo e cantar aquelas músicas dos Mamonas com meus primos meninos, trepar na jabuticabeira do seu quintal, jogar videogame com eles. Quanto vento soprou desde aquele então. Já não somos crianças, agora temos contas e bebemos vinho e viajamos sozinhos pelo mundo. Viramos a gente grande de quem nos ríamos nos churrascos da família.

Mas preservamos a cumplicidade conquistada, ou melhor, construída. Muito mudou, é verdade, só que debaixo de tantas camadas ainda nos reconhecemos, e nos sabemos, e nos queremos. Me pego vendo suas fotos publicadas em redes sociais e lamento não estar nelas. Reviso as minhas fotos guardadas no computador, e meu coração aperta ao não encontrar registro desse período tão importante e precioso. Sinto saudades do que a gente viveu e do que a gente podia ter vivido. Penso, ansioso e contente, nos lugares que vou mostrar à minha prima, no vinho que vamos tomar, nas risadas que vamos compartilhar. E nas muitas, muitas fotos que vamos tirar.

Seja bem-vinda a Lima, prima. E muito bem-vinda, uma vez mais, à minha vida.

Sujeira, culpa e chibata

Estou cansado de viver sob a sombra de uma chibata moralista que me espreita pronta para açoitar impiedosamente. Estou cansado dos juízos simplistas, dos dedos apontados, das culpas.

Há poucas semanas a presidenta do Brasil lembrou, num debate, o incidente em que o candidato Aécio Neves, então senador, foi parado em uma blitz e se recusou a fazer o teste do bafômetro. Tinha a carteira de habilitação vencida e supostamente dirigia embriagado. Claro está, coberto de erros: cometeu pelo menos duas infrações gravíssimas segundo o código de trânsito e, se ia de fato bêbado, pôs vidas em risco. O que mais me chocou no caso, entretanto, foi a onda – o tsunami, melhor – de julgamentos morais, a quantidade de comentários que li sobre uma alegada improbidade atribuída ao sujeito não por causa de seus feitos ou desfeitos políticos, mas por sua conduta pessoal, como cidadão. De repente uma multidão de paladinos dos bons costumes (seria a tal “gente do bem”?) encorpou um discurso que o execrava como se o próprio tinhoso fosse, por sua falha tão humana quanto comum. Porque guarde a primeira pedra – já há suficientes voando por aí – quem nunca se entorpeceu ou não tem um chegado que o tenha feito, usando drogas lícitas ou não, com propósitos espúrios ou por ingênua diversão. Eu mesmo já dirigi alcoolizado, digo sem nenhum orgulho, e conheço muita gente que até hoje dirige. Gente muito “do bem”, inclusive, mas que também se apressa em julgar quando lhe convém. Como muito bem definiu um amigo uma vez: “Fantasia é o que eu faço entre quatro paredes sem ninguém saber; imoralidade é a mesma coisa, mas quando o outro faz e se torna público”. Ou seja, a sua imundície me ofende, mas a sujeira que fica no meu umbigo está permitida, já que eu não vejo – nem quero ver.

Outro dia foi a caça às bruxas com o povo nu em Porto Alegre. Pessoas que encontraram na nudez sua forma de protesto, já que a sociedade parece se chocar tanto com corpos expostos na rua – mas na novela das 9 pode cena de sexo (beijo gay, não), nos comerciais de cerveja pode mulher pelada, no carnaval e no futebol e na festa infantil que toca funk proibidão também pode. Sim, pode mesmo. Tem que poder. É pele, meu povo. É pescoço, braço, peito, bunda, piroca, xereca, cabelo, sovaco, nada que seja tanta novidade assim. Mas, de novo, não faltam censores para criticar a exposição – ou a liberdade – alheia.

Agora é esse papo do aborto. É um tema sério, importantíssimo, que precisa ser discutido a fundo e que necessita de novos entendimentos e caminhos no Brasil. Há muitas nuances, alguma ética e um sem número de argumentos para cada situação: os cenários são múltiplos, aliás são absolutamente particulares, e as decisões deveriam, sim, ser mais subjetivas (no sentido de pessoais). Mas é outro assunto espinhoso, que resgata uns tais valores confundidos com transcendência que justificam críticas condenatórias perigosamente massificadas. Como no caso dos indiciados pelo “apoio moral” à moça Jandira, que morreu ao tentar fazer um aborto clandestino. Ora, não vou fazer confissões nem expor ninguém, – e mesmo ao não fazê-las já deixo clara minha inclinação. Mas penso que a mulher tem que ser consciente e soberana para fazer suas escolhas, inclusive quanto à interrupção da gravidez. Tenho muitas amigas mães, acompanhei muitos dramas, de perto até. Sei que a maternidade enleva e realiza, mas também sei o quão desafiadora e torturante ela pode ser. Foro íntimo é o que eu defendo. E respeito à diferença de opiniões e às escolhas do outro.

Culpa é uma semente de ódio que metem na nossa cabeça desde muito cedo, e apontar dedos é regar esse ódio. Em vez de cuidar das vidas alheias, cuidemos de manter os nossos umbigos limpos. Ou aceitemos essa sujeira deles, lembrando que ela não é melhor nem pior que nenhuma outra.

Outros bairros

Tenho um defeito de caráter, admito: costumo circunscrever meu cotidiano à microrregião onde moro, minimamente ampliada em um ou dois bairros, quando tanto. Em Fortaleza, era o Parque Araxá (e a Parquelândia) mais o caminho pro Colégio ou pra faculdade, nem 3km de distância, acrescidos da rota pro Iguatemi, onde eu costumava gazear aula e dar um rolezinho nos finais de semana. Quando cheguei a São Paulo e morei na residência universitária, fazia tudo o que podia dentro do campus: além das aulas e do trabalho, eram filmes no CINUSP, vôlei no Cepê, vernissages (vulgo BOCALIVRE!) no Paço das Artes, farras na Festeca… Mudando pra Vila Madá, aí é que não variava mesmo: vivia no melhor bairro da cidade, fazia tudo a pé e não queria mais nada. Fui pra região da Paulista e, de novo, o mais longe que ia era o escritório: caminhava até a Faria Lima e, no percurso de volta, resolvia a vida pertinho de casa. Aqui em Lima não é diferente: Miraflores é um distrito prático, seguro, bonito. Tem tudo: restaurantes, centros culturais, cinemas, lojas, serviços, conveniência. De vez em quando vou a Barranco para uma noitada ou a San Isidro resolver qualquer coisa, mas quase sempre fico pelo meu bairro mesmo.

Mas hoje foi dia de explorar. Jorge amanheceu criativo e inventou de ir ao Mercado Municipal de Magdalena. Eu havia ido lá uma vez para comprar ingredientes quando preparamos as hallacas no último Natal, mas hoje o plano era descobrir os huariques no mercado e suas delícias escondidas. Chegamos e passeamos pelos apertados corredores aos gritos de comerciantes que competiam freneticamente pelos muitos fregueses. Muita gente se amontoava para comer nos balcões de espaço mínimo, e a fome apertava. Decidimos tentar um restaurante na cercania, e que grata surpresa foi encontrar o Los Esteros de Tumbes: cerveja gelada, atendimento cortês, ceviche fresco e muito bem preparado, seguido de um tacu-tacu de pallares con salsa de lansgotinos que papai-do-céu. A sobremesa foi espalhada: uma crema volteada ali, um três leches de chocolate acolá, enquanto caminhávamos até San Miguel, bairro onde o Jorge cresceu. Nos perdemos por ruas com cara de infância, que me pareciam familiares como aquelas fotos em cores lavadas nos velhos álbuns de fotos na casa da tia cheirando a talco. Ele me mostrou o colégio onde estudava, a casa onde viveu, contou as histórias dos vizinhos, se emocionou e me emocionou junto. Seguiríamos ao Lugar de La Memoria, mas um amigo nos contou que o museu estava fechado, então voltamos à casa para descansar um pouco. No fim do dia, fomos conhecer uma sorveteria nova – e espetacular – que abriu perto de casa, a Amorelado, instantaneamente agregada aos sites favoritos. Buchos devidamente esfriados e preenchidos, rumamos ao Puericultorio Perez Aranibar, onde está rolando um projeto teatral super bacana chamada Kontenedores: 14 micropeças de 15 minutos são apresentadas a audiências reduzidas em 7 contêineres espalhados num jardim, onde há também um bar, comidinhas e um DJ animando o ambiente. Vimos duas esquetes cômicas (“Armadas hasta los dientes” y “Ese dedo”), com textos e atores afiados, e saímos com a sensação de um domingo deliciosamente diferente.

O aprendizado do dia foi que há muita coisa interessante acontecendo por aí, onde a mão curta não chega ou o olhar preguiçoso não alcança. Escapar do umbigo é preciso; viver não é preciso.